Ano eleitoral reforça debate sobre como tornar mais eficiente a gestão pública

O DNA da gestão pública no Brasil é cheio de ismos. Patrimonialismo, clientelismo e corporativismo – para citar três exemplos – são alguns dos atributos da carga genética que, há décadas, sabota as tentativas de reforma administrativa do Estado brasileiro. Na eleição deste ano, a eficiência na máquina estatal estará novamente em debate.
Eleita sob os títulos de boa gestora e mãe do PAC, Dilma Rousseff enfrentará neste ano dois adversários que têm a eficiência na administração pública como bandeira. A disputa pelo Planalto deverá ser fortemente marcada pelo debate sobre capacidades gerenciais.
Número de ministérios e de cargos de confiança, redução da burocracia e racionalização de gastos serão temas de embates entre a atual presidente e candidata à reeleição pelo PT, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o governador Eduardo Campos (PSB-PE).
Formas de azeitar a máquina estatal, no entanto, não são medidas de fácil implementação. 
Divergências ideológicas, disputas partidárias, corporativismo dos servidores e fatores históricos e culturais costumam travar as iniciativas.

Em períodos históricos diferentes, o Brasil já viveu duas grandes tentativas de reforma administrativa, nos governos Getúlio Vargas e Fernando Henrique Cardoso. Entre elas e depois delas, medidas importantes foram adotadas, mas também com resultados tímidos.
— Ainda não chegamos aonde países desenvolvidos estavam no início do século 20. O clientelismo e o patrimonialismo, males do século 19, continuam fortes. A modificação é demorada e complexa. Todo mundo discursa a favor da modernização do Estado, mas, na prática, poucos priorizam o tema — diz Francisco Gaetani, doutor em Gestão Pública pela London School of Economics, funcionário de carreira da União desde 1988 e secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente.
Um dos motivos pelos quais é tão difícil dar novas feições ao Estado, segundo Gaetani, é a falta de um modelo claro de gestão para o país. Por trás da indefinição está o que o professor de administração pública Alvaro Guedes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), chama de “embate estéril”:
— O problema é que a questão vem sendo limitada a uma disputa ideológica entre a versão estatizante e a liberal. Essa discussão está ultrapassada e serve apenas para jogar uma cortina de fumaça sobre o assunto.
Outro complicador, na concepção do economista José Matias-Pereira, da Universidade de Brasília (UnB), é a falta de engajamento do funcionalismo. O pesquisador afirma que a reforma de FH falhou por ter sido feita “de cima para baixo”. Quanto aos 11 anos do PT no poder, Matias-Pereira também faz uma avaliação crítica:
— O que estamos vendo é o aparelhamento do Estado. Reduzir o número de ministérios seria, no mínimo, uma demonstração de que o governo está disposto a melhorar as coisas. 
Isso não significa que os especialistas sejam céticos sobre o futuro, mas o êxito não depende só do Estado.

— A desqualificação do serviço público está introjetada na sociedade. Muita gente sonha em passar em um concurso para ter estabilidade e nunca mais ser cobrado. A mudança precisa começar por aí — destaca Guedes.
Além disso, modernizar a gestão é muito mais do que transplantar experiências do setor privado para a esfera pública. Para Gaetani, é preciso internalizar princípios como mérito e transparência, ampliar as formas de controle social e colocar o interesse público à frente do particular.
As engrenagens
Promoção por mérito: a meritocracia é a base para qualquer administração competente e um dos caminhos para melhorar a qualidade do serviço público, que deve ser capaz de atrair e manter os melhores cérebros. Para superar a resistência do funcionalismo, o pacote precisa incluir salários compatíveis com o mercado, garantia de recompensa por desempenho e capacitação permanente.
Transparência: uma gestão pública eficiente pressupõe transparência e responsabilização dos agentes (accountability). Em vigor desde 2012, a Lei de Acesso à Informação propiciou avanços, mas ainda patina. Extinguir a cultura do sigilo é facilitar o controle social e ampliar a pressão por melhorias. Não à toa, os três primeiros países a aplicar a lei (Suécia, Finlândia e EUA) ostentam índices elevados de desenvolvimento.
Gestão por resultados: velha conhecida do setor privado, a contratação de metas é uma das medidas indicadas para oxigenar a administração pública, em todos os seus níveis. O principal benefício da pactuação é a definição de prioridades e de objetivos precisos para o funcionalismo e, com isso, a possibilidade de avaliação sistemática e de cobrança de resultados, inclusive por parte da sociedade.
Governança pública: é um conceito em evidência nos debates sobre a nova gestão pública. Aumentar a governança significa ampliar a capacidade de o Estado de implementar de forma eficiente as políticas públicas. A ideia está associada a uma nova geração de reformas administrativas, com destaque à gestão compartilhada com comunidades e organizações empresariais, por meio de parcerias estratégicas.
Menos burocracia: o modelo de administração burocrática surgiu no Brasil dos anos 1930 e, desde então, sofreu sucessivas tentativas de reforma. Mas os resquícios da velha burocracia seguem emperrando a máquina. A superação do problema passa por uma série de medidas: flexibilização, descentralização, mais espaço para a criatividade e autonomia e simplificação dos processos administrativos.
Melhor seleção: a revolução administrativa só se completará quando os cargos-chave forem ocupados por profissionais com reconhecido domínio técnico. Isso inclui priorizar os concursos públicos e reduzir o número de CCs com indicação meramente política, sem a devida qualificação. Os cargos de confiança devem servir para atrair pessoas do setor privado, com experiência e alto desempenho em suas áreas de origem.
Da herança colonial portuguesa à eficiência gerencial
Entenda as formas de organização e os fenômenos que caracterizam o Estado brasileiro ao longo dos séculos
Patrimonialismo: nesse modelo, o público e o privado se confundem. Há corrupção, clientelismo e nepotismo. No caso do Brasil, pode-se dizer que o patrimonialismo é uma herança do período colonial que se aprofundou na República Velha e ainda não foi totalmente superada.
Modelo burocrático: surgiu para impor as ideias de impessoalidade e racionalismo à gestão pública. No Brasil, nasceu a partir da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público por Getúlio Vargas. Mas o excesso de burocracia tornou o Estado mais lento e ineficiente.
Modelo gerencial: foi a saída encontrada para superar os entraves burocráticos e modernizar a gestão. Eficiência e qualidade na prestação de serviços se tornaram palavras de ordem. No Brasil, a reforma teve início em 1995, no governo FH, mas ainda está longe de ter êxito.
As principais iniciativas desde a redemocratização
Sarney (1985-1990): primeiro governo após a redemocratização, desenvolveu um programa de privatizações com reflexos nas desestatizações dos anos 1990 e oficializou a carreira de especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Collor (1990-1992): em seu curto governo, Fernando Collor, hoje senador, criou o Programa Nacional de Qualidade e Produtividade, que começou a introduzir no setor público técnicas oriundas do setor privado. Era o início do modelo gerencial.
Itamar (1992-1994): vice de Collor e seu substituto na Presidência, buscou, essencialmente, repor o salário do funcionalismo. Seu mandato foi mais centrado nos problemas econômicos, desembocando na criação do Plano Real.
FH (1995-2002): instituiu o Ministério da Administração e Reforma do Estado e promoveu uma tentativa de reforma gerencial entre 1995 e 1998. Entre as medidas, estava a transferência de serviços para entidades civis.
Lula (2003-2010): realizou concursos, criou carreiras profissionais nos ministérios e agências, melhorou salários e estruturou órgãos de controle, em especial a Controladoria-Geral da União, que atua como uma agência anticorrupção.
Dilma (2011-2014): criou a Câmara de Gestão, Desempenho e Competitividade, sancionou a Lei de Acesso à Informação e o regime diferenciado de contratações (maior agilidade a licitações) e promoveu concessões públicas.
Entrevista — Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Reforma do Estado
“O Estado tem de ser capaz de recrutar jovens brilhantes”
Professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Luiz Carlos Bresser-Pereira, 79 anos, foi o responsável por implementar, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a reforma gerencial do Estado brasileiro. Bresser-Pereira também foi ministro da Fazenda de José Sarney e titular da pasta da Ciência e Tecnologia no segundo mandato de FH. A seguir, confira trechos da entrevista concedida a ZH.
Zero Hora — Por que é tão difícil tornar mais eficiente a gestão pública no Brasil?
Bresser-Pereira — Sempre se dirá que a máquina pública é lenta, porque sempre é possível fazê-la melhor. E aí também entra um embate ideológico pesado. Os conservadores que querem pagar menos impostos dizem que o Estado é absolutamente ineficiente e que todo o dinheiro vai para corruptos ou para servidores que não trabalham. Isso é ridículo. Em 1995, me dispus a fazer uma reforma do aparelho do Estado para torná-lo mais eficiente e melhor organizado. A experiência foi muito bem-sucedida. Até hoje, é tema fundamental dos estudos de administração pública no Brasil.
ZH — Então o senhor acha que está tudo bem?
Bresser — Não, mas o Brasil está avançando. Eu consegui, por exemplo, que passassem a ser feitos concursos públicos periódicos para todas as carreiras importantes do Estado. Com isso, temos hoje jovens servidores de alto nível, quase todos com mestrado. É impossível dizer que esse Estado é incompetente. Essa é uma imagem equivocada. É claro que precisa melhorar, e muito. Se o Brasil quer crescer 5% ao ano, a produtividade no setor público também precisa crescer nessa base, e para isso é preciso tornar muito mais eficientes todos os serviços. 
ZH — O senhor acredita que a reforma está andando?
Bresser — Sim. A reforma de 1995 é a segunda do Estado moderno. A primeira possibilitou a transição de um Estado patrimonialista para um Estado burocrático e liberal. Ela demorou 40 anos. Esta aqui também vai demorar. O Estado é uma coisa muito grande. São milhares de servidores. É toda uma estrutura que vai mudando aos poucos. É claro que devemos criticar a ineficiência, porque isso nos obriga a melhorar, mas não vamos achar que o Brasil é um Estado de corruptos e de maus servidores. A maioria não é.
ZH — Como a gestão petista vem lidando com a questão?
Bresser — Inicialmente, no governo Lula, parou com tudo, mas aos poucos foi cedendo. Que Dilma é uma boa gestora, não há dúvida. O problema é que a esquerda — não só no Brasil — não representa apenas os trabalhadores, mas também a classe média burocrática. E essa classe, no início, se sentiu ameaçada. Por conta disso, o PT se opôs. Agora, isso está mudando.
ZH — O que ainda precisa ser feito para melhorar a máquina?
Bresser — O primeiro passo é aumentar o número de organizações sociais (entidades sem fins lucrativos que assumem serviços não exclusivos do Estado). A lógica é tornar a administração mais flexível e, portanto, mais eficiente. Para cada organização, é preciso ter um plano estratégico que permita a cobrança de resultados. Tem de haver o controle social.
ZH — E depois?
Bresser — Ter um melhor processo de promoção por mérito. Isso é mais difícil, porque a burocracia resiste violentamente. Quando você monta um sistema de avaliação, eles dão nota 10 para todo mundo. É importante, mas é quase impossível. E, por fim, é preciso fazer com que o Estado seja capaz de recrutar os jovens mais brilhantes que o país produz. Os servidores públicos deveriam ser poucos, mas muito bem escolhidos e bem pagos.

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